quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Artes Marciais no treinamento do Ator

Cesário Augusto



Atuante Margaret Freeman executando âsana (postura) dinâmica, acompanhada por puraka (inspiração) e rechaka (expiração), do ha-tha yoga (yoga do sol e da lua). Note-se o impulso, vindo do plexo solar (região do umbigo correspondente, nas costas, ao gânglio lombar-espinhal ou, em terminologia sânscrita, manipura chakra) e chegando às extremidades dos dedos da mão esquerda e ao topo da cabeça da atuante.

Atuantes em teatro têm utilizado algumas artes marciais asiáticas como instrumento para aperfeiçoar o seu vigor e ações psicofísicas em cena. Espalham-se hoje, em quantidade jamais vista, diferentes metodologias de treinamento convergentes a fins similares, a despeito dos vários propósitos das estéticas de montagem. Exemplos fortalecem a idéia de que o preparo para a atuação tem sido o mote para horas e horas de exercícios praticados em estúdios: o Método Suzuki, desenvolvido pelo recluso e subversivo Tadashi Suzuki na Vila de Toga, Japão, e suas treze maneiras de se deslocar baseadas no teatro Noh, já se tornou ferramenta acolhida em países como Inglaterra, Brasil (onde já fora utilizado pelo diretor Antunes Filho), Nova Zelândia e Austrália; o norte-americano Phillip B. Zarrilli vem, há mais de trinta anos, aplicando o yoga, t’ai chi ch’uan e kalarippayattu (praticada em Querala do Sul, Índia) mundo afora, buscando atingir no performer a sua “agência”[1], aqui denominada também prontidão; Jerzy Grotowski (1933-99), estipulando que “eu não enceno uma peça para ensinar aos outros aquilo que já sei”[2], paradoxalmente deixou legado de exercícios psicofísicos onde o canto, em sua execução, passava a ser cantado pela tradição mais do que o seria pelo(a) atuante, chamado pelo diretor e filósofo polonês “feitor” ou “fazedor”; Eugenio Barba, agora completando quarenta anos[3] no comando do Odin Teatr, busca em práticas preparativas da Ópera de Pequim, do Teatro Kabuqui e dos rituais para-teatrais balineses elementos configuradores dos famosos barters – escambo de práticas –, objetivando ativar o nível “pré-expressivo”[4] dos atendentes; o brasileiro-catalão Moncho Rodrigues opta pela marcial, mas nem por isto menos festiva, prosódia épica da cantoria de cordel nordestina; o pernambucano Antônio Nóbrega passa adiante sua indisfarçável tara pela capoeira em oficinas inesquecíveis para quem delas participou; o grupo campinense Lume campeia movimentos de samurais aplicados em exaustivas sessões de busca pela precisão técnica e pelos extraordinários “espirros” da organicidade cotidiana; já o grupo paraibano Piolim atravessa nacionalidades e, mordendo o bolo pela beirada, dispara lá e aqui seu arsenal de rolamentos do judô e lutas com bastões do kendô, etc. Nunca se viu, mundo afora, tanta generosidade na troca de informações sobre o treinamento do(a) atuante; nunca se viu, mesmo no século passado, uma procura obsessiva em aperfeiçoar o comando psíquico e físico para a cena. Difícil equiparar época equivalente a tantos treinamentos para a o começo da partida.
Quando praticadas para o fim da “agência”, vigor, “foco”, “pré-expressividade” e “presença”, as Artes Marciais equacionam uma simples aritmética: rotina + disciplina = controle psicofísico. Richard Nichols, praticante de kendô e iai-do e professor do programa de mestrado da Universidade Estadual da Pennsylvania, EUA, aponta nove pontos emergentes do exercício contínuo das artes marciais no treinamento de atuantes:
1. Desenvolvimento do Foco (concentração);
2. Estar no momento: o ‘aqui e agora’;
3. O estabelecimento de imagens;
4. Focalização da energia com vistas à economia de ação/gesto;
5. Executar cada ação a seu tempo;
6. Expandir os horizontes da auto-imagem;
7. Desenvolvimento de um corpo flexível, controlado e equilibrado;
8. Unificação da mente e corpo;
9. Apreciação e desenvolvimento da disciplina; (NICHOLS, 1993, p.20).
Por foco entenda-se a visão periférica induzida pela sinestesia perceptiva do olfato, audição, tato e olhar implementados pela contínua prática das ações lentas e vigorosas do t’ai chi ch’uan, o qual também, junto ao yoga e sua sistemática respiração (pranayama) e posturas (âsanas), confere ao praticante a não-antecipação do momento, libertando-o de ansiedades, provendo-lhe a entrega ao fluxo de vários “presentes” intermitentes; um katá (seqüência fixa de ações com diferentes dinâmicas, utilizando chutes, socos e saltos) do karate-do exige, do(a) karateka (praticante) a imaginação de estar lutando com um(a) oponente pantomímico, porquanto invisível; a economia de ações encontra-se arraigada em posições específicas do kalarippayattu, como a vanakkam (execução precisa de passos e posições onde o controle da respiração é concomitante à execução das ações, as quais constituem posturas simples embora rigidamente amarradas em partitura); agir sem atropelar ou “acavalar” uma ação sobre a outra torna-se habilidade possível por meio da prática de combates com bastões e espadas do kendô; a expansão da auto-imagem refere-se ao destacar-se de si mesmo e observar mais do que se sentir observado, naquilo que em Querala do Sul, Índia, chamam “meyyu kannakuka”, cuja tradução do sânscrito veda, feita por Phillip Zarrilli, vem a ser “o momento de o corpo se tornar todos os olhos”[5]; a flexibilidade, controle e equilíbrio já tornou-se um lugar-comum de todas as Artes Marciais Asiáticas, e citam-se aqui, novamente, à guisa de exemplo, as âsanas (posturas) do ha-tha yoga; quanto à unidade corpo-mente, tais práticas, por seguirem o princípio taoísta, falam a nós brasileiros, em boa Língua Portuguesa, de trabalho psicofísico, no qual o corpo e a mente são o(a) próprio(a) indivíduo atuante, ao contrário da afirmação cartesiana de que o corpo seria o instrumento do ator/atriz, e a mente o comando, ou vice-e-versa; por último, a disciplina envolvida na prática das Artes Marciais, mais do que precípua condição a seu aprimoramento técnico, promove a obtenção do domínio orgânico (ou psicofísico) deflagrador da liberdade de agir, criar e pensar em cena.
Frise-se estarem os nove pontos acima descritos voltados à preparação do performer, dançarino, ator ou atriz, aqui denominados pelo nome genérico de atuante. A perspicácia de nomes como Zarrilli, Grotowski, Barba, Nichols, Grupos Lume e Piolim, Antônio Nóbrega, Suzuki e Moncho Rodrigues está em trazer para a arena pré-expressiva – como assim o batiza adequadamente o Teatro Antropológico de Eugênio Barba e colaboradores a situação orgânica de extrema presença e controle psicofísico – práticas, filosofias e conceitos das Artes Marciais cuja função, no contexto histórico e geográfico de sua origem, vai desde o de ataque e defesa pessoal até a reverência a deidades. Assim, em seu treinamento para o começo da partida para a expressão, o(a) atuante objetiva a diagnose e resolução de problemas inerentes à sua deficiência técnica, o que demanda de imediato a ciência da imperfeição e prontidão para o aprendizado.
Bibliografia Recomendada:
BARBA, Eugênio; SAVARESE, Nicola. The secret art of the performer. London: Routledge, 1991, 272 p.
NICHOLS, Richard. Asian martial arts as a “way” for actors. In: ZARRILLI, Phillip (Ed.). Asian martial arts in actor training. Wisconsin: University of Wisconsin-Madison, 1993. pp.19-30.
REVISTA LUME. Campinas: Unicamp, 1997.
SCHECHNER, Richard. Jerzy Grotowski (1933-1999). In: TDR - Turlane Drama Review, vol.43, no. 2 (T162), Summer, 1999. pp.5-7.
__________________ & WOLFORD, Lisa. The Grotowski sourcebook. London: Routledge, 2001.
ZARRILLI, Phillip. When the body becomes all eyes. New Deli: Oxford University Press, 2000.
_______________ (ed.). Asian martial arts in actor training. Wisconsin: University of Wisconsin-Madison, 1993, 124p.



[1] Zarrilli empresta-se do termo utilizado pelo filósofo Michel Focault, quando o mesmo propõe ser a “agência” a produção, transformação ou manipulação de coisas, em processo deflagrador, no atuante, de sua transformação psicofísica, objetivando a obtenção de “certos estados” determinantes de “condutas” especiais. (FOCAULT apud ZARRILLI, 2000, p.7).
[2] Preconização atribuída a Grotowski por Richard Schechner e Lisa Wolford (GROTOWSKI apud SCHECHNER & WOLFORD, 2001, p.xv).
[3] Época em que este artigo foi publicado. Hoje, o Odin Teatret está em seu quadragésimo terceiro ano de existência.
[4] O “nível pré-expressivo”, estado existente também durante a atuação, ou seja, durante a expressão propriamente dita, insere-se na negociação entre metodologias de treinamento e estética. Neste ponto, convergem as noções de vigor e agência desdobradas neste artigo. De acordo com Eugenio Barba e Nicolas Savarese, o nível se refere “ao como manter a energia cênica viva, ou seja, em como o ator se torna uma presença que imediatamente atrai a atenção do espectador” (BARBA & SAVARESE, 1995, p.188).
[5] Tal expressão, encontrada pelo professor Zarrilli em suas pesquisas voltadas ao mapeamento do organismo e filosofia suportes da práticas marciais indianas, faz-se valer pelo dito do Senhor Bhrama, “aquele de mil olhos”, figura pertencente à mitologia védica (ZARRILLI, 2000, p.19).

Nenhum comentário:

Postar um comentário